Poucos dias depois da eclosão da crise da Americanas, no início de 2023, um instrumento lançado com a nova lei das falências foi utilizado pela varejista para
evitar, de forma rápida, ações de execução por credores. Depois de ter chamado a atenção na maior crise corporativa da história do país, o uso dessa ferramenta
ganha espaço à medida que os problemas financeiros de companhias avançam.
Com as chamadas tutelas cautelares antecipatórias - ou de mediação -, as empresas buscam, na prática, congelar por 60 dias cobranças de credores, ou para se buscar
um acordo, ou para ter tempo hábil de preparar um inevitável pedido de recuperação judicial.
Cada vez mais conhecidos, esses pedidos passaram a ser vistos em muitos outros casos de empresas em dificuldades, incluindo os de grande porte, que buscam
renegociar dívidas, caso recentemente da Unigel, InterCement, 2W, Grupo BBF e Unimed-Rio. A Araquaia Níquel, subsidiária da Horizonte Minerals, também entrou
neste ano com uma liminar para suspender a cobrança de dívidas e tentar negociar com credores.
"Pedido pode ser um recado de última chance para se evitar uma RJ”
— Giuliano Colombo
A avaliação, segundo especialistas, é que ainda há mais espaço para o uso dessa ferramenta, com empresas entrando com cautelares antes de partirem para uma
recuperação judicial (RJ).
No entanto, existe a crítica de que essa cautelar foi criada em um ambiente pandêmico, em que as empresas precisavam de uma proteção rápida para
sobreviver dada a súbita mudança de cenário naquele momento - muitas companhias tiveram que ficar de portas fechadas por um longo período, por
exemplo. Assim, atualmente, com a situação normalizada, haveria menos razões para seu uso.
Do lado das empresas, muitas estariam usando a ferramenta, segundo advogados ouvidos pelo Valor, para repassar um “aviso” aos credores, na tentativa de forçar
uma negociação e evitar a RJ. Para especialistas, o caso Americanas ajudou a dar mais visibilidade ao instrumento. Em outros países, muitos usam a ferramenta de
mediação judicial mas, segundo especialistas, não há em outras jurisdições cautelares negociais semelhantes às da lei brasileira.
Segundo levantamento da Biolchi Empresarial a pedido do Valor, apenas no Estado de São Paulo, foram registrados neste ano até aqui 26 pedidos de tutela preparatória
para recuperação judicial, ante 30 em todo o ano passado. Considerando os dados de janeiro a julho, neste ano foram 21 pedidos, ante 11 no mesmo intervalo de 2023.
Em 2022, foram 15 e, no ano anterior, quando a ferramenta começou a ser utilizada, apenas quatro.
“Isso mostra o aumento desse tipo de estratégia, ou pela falta de documentos prontos ou urgência de se buscar o Judiciário, com uma situação mais gravosa do
devedor”, diz Juliana Biolchi, sócia da Biolchi Empresarial. Segundo a especialista, o número pode não ter crescido mais porque, em alguns pedidos recentes, a Justiça
tem exigido a mesma documentação solicitada em processos de recuperação judicial, dificultando, com isso, o acesso das empresas à ferramenta.
Bruno Baratta, responsável pela operação brasileira da reestruturadora Houlihan Lokey, enxerga como natural o crescimento das cautelares após a inclusão do artigo
em lei. “Conforme mais casos vão ocorrendo, principalmente em casos grandes e com visibilidade, vão sendo criados precedentes, o que por um lado dá maior
segurança jurídica ao mecanismo, e acaba dando maior conforto para outras companhias usarem”, diz. Segundo ele, nos casos em que estão sendo utilizadas as
cautelares de mediação, por exemplo, se observa empresas que já vinham negociando com credores, mas que precisaram entrar em um ambiente de proteção, porém
ainda sem a necessidade de uma recuperação judicial.
Outro caso, explica, envolve empresas que não estavam ainda em negociação com credores, mas que, por algum motivo, tiveram que acelerar uma negociação, para
poder avaliar a necessidade de uma recuperação extrajudicial ou judicial.
“Normalmente, a cautelar vem como extensão de um processo de negociação que já vem se desenrolando. E o pedido é necessário para se dar dentro do ambiente da
cautelar seja por proteção, abrangência dos credores ou tempo de organização da companhia para um protocolo futuro”, diz.
Para Marcelo Ricupero, sócio do escritório Mattos Filho, a cautelar tem sido utilizada pelas empresas com necessidade de obter o chamado “stay period” (suspensão das
ações e execuções), no intuito de se buscar um alinhamento com credores para uma recuperação. “No geral, se trata de uma conversa que já está ocorrendo, mas na
cautelar pode atrair mais algum credor para a mesa. É natural que estejam crescendo [os pedidos de cautelares].”
Para Ricupero, um dos principais problemas da RJ são, de um lado, sua duração, e, de outro, o elevado custo envolvido em todo o processo. Assim, nesse período de 60
dias, grupos e credores podem buscar um direcionamento e os próximos passos.
“Esse é um processo preparatório, para que em um ambiente mais organizado se defina os próximos passos, que pode ser uma RE (recuperação extrajudicial), em um
caso bem-sucedido, ou uma RJ com os caminhos potencialmente definidos.”
Assim, a cautelar tem uso efetivo quando a companhia está em negociação e sofre uma ameaça de execução, afirma Roberto Zarour, sócio de reestruturação e
Insolvência e bancário do escritório Lefosse. Com isso, segundo o especialista, a empresa consegue suspender suas execuções para tentar estruturar uma
recuperação extrajudicial ou preparar seu pedido de recuperação judicial.
Apesar de muitas empresas estarem lançando mão das cautelares, não é consenso que seu uso é, no fim das contas, positivo. O sócio da área de reestruturação do
escritório Pinheiro Neto Giuliano Colombo, por exemplo, afirma que não enxerga hoje razão para o uso das cautelares, já que em um ambiente normal, uma empresa
tem sua situação financeira se deteriorando de forma gradual e, assim, pode tentar uma negociação com seus credores de forma antecipada ou, a depender do caso, já
ingressar com uma recuperação judicial, sem a necessidade de um pedido de cautelar. “A cautelar não é uma indutora de solução.”
O especialista lembra, por exemplo, que uma cautelar antecedente com mediação dificilmente resultará em acordo, visto que um dos lados já não tinha aceitado
previamente a negociação. Nos casos em que há consenso entre empresa e credores, por exemplo, não há necessidade de cautelar, aponta Colombo. Esse foi o
caso, por exemplo, das Casas Bahia, que se sentou com seus principais credores e chegou a um acordo, protocolando, diretamente, o pedido de recuperação
extrajudicial.
O advogado do Pinheiro Neto afirma que a cautelar criou, assim, mais uma etapa antes da recuperação judicial. Ele diz, por outro lado, que em uma cautelar a
proteção pode ser ainda mais extensa, como travar uma alienação fiduciária (um bem dado em garantia a um empréstimo), o que foi visto em algumas das ações -
algo que não ocorre dentro de uma recuperação judicial. “Em uma cautelar, a empresa consegue ‘comprar’ 60 dias, não tem ‘downside’ [queda].”
Apesar da crítica, Colombo acredita que o uso da cautelar ainda vai crescer. “Esse tipo de pedido vai continuar subindo, é uma opção barata”, diz. Algumas empresas
entendem que se trata de uma mensagem a ser transmitida aos credores. “A última chance de se evitar uma RJ”, diz.
Das empresas citadas, Unigel, Unimed-Rio e Araguaia Níquel entraram com pedido de recuperação extrajudicial depois das cautelares. Procuradas, as companhias não
comentaram. InterCement, BBF e 2W também preferiam não se pronunciar.