
Empresas começaram a prever nos planos de recuperação extrajudicial o financiamento DIP - tipo de operação prevista apenas em recuperações judiciais. Entre janeiro de 2024 e o mês de outubro deste ano, 17 companhias de grande porte (faturamento acima de R$ 4,8 milhões) discutiram essa possibilidade nos acordos com credores, de um total de 87 em reestruturação no período. O levantamento foi feito pelo Observatório Brasileiro de Recuperação Extrajudicial (Obre) a pedido do Valor.
A questão é inédita e polêmica por conta da falta de previsão legal. A dúvida, segundo especialistas, é se os valores investidos têm prioridade em caso de falência e se é mantida a “blindagem” do investimento caso uma decisão derrube a operação no futuro. A preferência e proteção são garantidas pela lei de insolvência nas recuperações judiciais, um processo mais complexo, demorado, custoso e que exige fiscalização da Justiça por até dois anos.
Milhões de reais estão em jogo, assim como o soerguimento das empresas. O BTG é um dos principais players e interessados, pois deu o financiamento na reestruturação da rede de supermercados St. Marché, no valor de R$ 44 milhões. É o primeiro e único caso em que o Judiciário já homologou plano de recuperação extrajudicial com a previsão de DIP. A decisão foi dada no dia 10 deste mês, mas ainda está aberto o prazo de contestação para os credores. A dívida da varejista é de R$ 528 milhões. Neste caso, há a particularidade de que o financiamento só pode ser dado pelos próprios credores, não foi aberto ao mercado. Na prática, serve para eles melhorarem a recuperação dos créditos. Segundo fonte que acompanha o caso, ainda haverá aporte dos acionistas. É uma situação diferente da Two Square Transmission (antiga Sterlite), de infraestrutura energética, em que há previsão de DIP do BTG, no valor de R$ 200 milhões, porque a instituição financeira não é credora, apenas investidora. LEIA MAIS: Debenturistas da Two Square tentam antecipar vencimentos Após a apresentação do plano da Two Square, cujo passivo é de R$ 1,3 bilhão, foi dado prazo para impugnações. O empréstimo é a principal forma de soerguimento, por meio da emissão de debêntures, além de rolagem da dívida. Em outras ações, como do Grupo Rio Alto, de energia, e da Agora Distribuidora, de tecnologia, as previsões de DIP são genéricas, sem investidor concreto.
A controvérsia é que, nos documentos, se prevê “prioridade absoluta” sobre os créditos do financiador, nos termos do artigo 84 da lei falimentar, “inclusive em caso de superveniência de falência das devedoras”. O tema não é consenso e a Justiça, segundo advogados, nunca enfrentou um caso concreto. Na doutrina, alguns admitem a possibilidade, pela “interpretação sistemática” da lei. Outros entendem ser mais uma exceção que dá “soberania” ao instituto.
O administrador judicial da Two Square, Leonardo Dias, do AJ Ruiz Administração Judicial, diz que o caso é semelhante ao da St. Marché, mas a cláusula de prioridade não foi debatida na sentença de homologação do plano. “É discutível se o plano pode dizer que um credor será extraconcursal em caso de falência, porque essa é uma regra que se aplica para as recuperações judiciais. Esse ponto não foi abordado na sentença e é uma discussão inédita.” No caso da St. Marché, um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) questiona a forma de concessão do DIP, pela emissão de debêntures. “Nem todos os agentes financeiros, como é o caso dos FIDCs, estão legalmente autorizados, por força de seu regulamento, a adquirir valores mobiliários, incluindo debêntures. Essa limitação acabou restringindo a participação de parte significativa dos credores”, diz o advogado Felipe Zago, do FZ Advogados Associados, que representa um fundo. Para o ex-juiz e advogado Daniel Carnio Costa, do Daniel Carnio Advogados, não é possível dar os mesmos benefícios do DIP em uma recuperação extrajudicial. “A rigor, não é um DIP. DIP é um financiamento próprio da recuperação judicial”, afirma. Para ele, permitir isso “confronta com a ordem de credores prevista na lei de falência, que é uma norma de ordem pública”. “Não dá para uma cláusula contratual criar uma super prioridade e transmudar a natureza desse financiamento”, completa. Carnio entende, porém, que nada impede o plano de prever um financiamento estruturado, aprovado pelos credores e a devedora. “Não vejo problema em se estruturar um financiamento com garantias que possam ser aceitas pela maioria dos credores, só não acho que isso seria um DIP”, diz.
Na visão de Julia Tamer Langen, do Veirano Advogados, deve ser permitido o DIP nas recuperações extrajudiciais com as mesmas benesses, pois atrai investidores capazes de soerguer a companhia insolvente. “É uma virada de chave, porque deixa de se ver a crise como crise e passa a ver como ativo financeiro, investimento. Atrai gente com dinheiro capaz de transformar uma história triste em uma volta por cima.” É também o que pensa o professor Manoel de Queiroz Pereira Calças, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). “Não é caso de se dar interpretação restritiva, mas sim ir de acordo com a racionalidade econômica e com o objetivo do legislador, que era estimular a recuperação extrajudicial”, afirma. “É muito mais coerente aplicar os institutos previstos na recuperação judicial”, adiciona.
Para Juliana Biolchi, sócia da Biolchi e diretora do OBRE, os credores é que devem fazer o “crivo da legalidade” do DIP.
Fabiana Solano, do Felsberg Advogados e que representa o Grupo Rio Alto e Agora nas reestruturações, defende que o investimento tem efeitos diferentes nas duas modalidades processuais. “Enquanto na recuperação judicial o DIP conte com a definitividade da garantia e uma superprioridade de pagamento, se a devedora falir, na extrajudicial o único efeito do DIP é a definitividade da garantia outorgada”, diz. Na visão dela, é preciso que o DIP esteja atrelado a uma garantia fiduciária na recuperação extrajudicial. “Nesse caso, o devedor poderá se pagar com a venda ou excussão da garantia fiduciária, sem sequer entrar na ordem de prioridades de pagamento na falência”, afirma. Embora ela reconheça que os efeitos sejam mais restritos, defende que isso “não tira o brilho e as vantagens da operação”.
Para um ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), esse dispositivo pode garantir a validação do investimento. “Não se extrai essa interpretação [de que DIP é possível nas recuperações extrajudiciais] da literalidade da lei, mas dá para construir com consistência que se aplicam as regras do DIP à recuperação extrajudicial, principalmente com o artigo 66-A”, diz. Filipe Guimarães, do Galdino, Pimenta, Takemi, Ayoub, Salgueiro, Rezende de Almeida Advogados, advogado da Two Square, afirma que, com a mudança da lei em 2020, a tendência é que essas operações sejam mais frequentes nas recuperações extrajudiciais.
“São processos, em tese, mais rápidos, com menos formalidade”, diz. Se os credores entendem que o financiamento deve ser tratado como um DIP e surtir os mesmos efeitos que o de uma recuperação judicial, acrescenta, “não vejo porque não poderia”. Ele também defende que, em caso de eventual falência, a cláusula de prioridade do investidor financeiro não deveria ser rediscutida. “Mas é uma questão em aberto.