A recuperação extrajudicial passou a ser mais adotada por empresas em crise. O número de processos formalmente abertos dobrou de 2022 para 2023. Foram 32 casos no ano passado, volume que, segundo levantamento do Observatório Brasileiro de Recuperação Extrajudicial (OBRE), da consultoria Biolchi Empresarial, é quatro vezes maior do que o registrado antes da reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falência em 2020 - por meio da Lei nº 14.112.
Em 2023, os pedidos de recuperação extrajudicial incluíram o time Botafogo, do Rio de Janeiro, e a rede varejista de moda Amaro. Recentemente, as construtoras Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e Novonor (antiga Odebrecht) também usaram a medida.
Criado em 2005, o instrumento da recuperação extrajudicial ficou adormecido até o ano de 2015. No período, foram registrados apenas quatro pedidos para o uso da ferramenta, de acordo com o OBRE.
Especialistas ressaltam que os números podem ser ainda maiores, pois há um “universo oculto” de recuperações extrajudiciais que não são registradas na Justiça. Em muitos casos, as negociações prévias entre empresa e credores são tão bem-sucedidas que o plano é fechado e não é encaminhado para homologação judicial.
Segundo a advogada Juliana Biolchi, da Biolchi Empresarial, a principal reforma feita pela Lei nº 14.112, de 2020, foi reduzir o quórum necessário para a aprovação de um plano de recuperação. No texto original da lei (nº 11.105, de 2005) o quórum era de 60% dos créditos. A reforma reduziu esse volume para 50% e criou ainda uma modalidade provisória, na qual o quórum inicial para ajuizar o plano é de apenas 33% dos créditos.
Na modalidade provisória, uma vez aprovado o acordo pelos credores responsáveis por 33% dos créditos, o plano já pode ser levado à Justiça, e a empresa ganha 90 dias para tentar convencer mais credores e chegar a 50% do total. Mas, assim que é aprovado o pedido provisório, a empresa ganha um efeito protetor, garantindo judicialmente a suspensão da cobrança (execução) das dívidas pendentes até que o prazo de 90 dias se esgote.
Credor pode negociar a proposta ou ela pode vir goela abaixo” — Marcelo V. de Mello
Para Juliana, decretado o período de espera para cobranças (stay period), a situação muda para a empresa em crise e outros credores tendem a se interessar em aderir ao plano. Uma vez homologado esse plano, as condições passam a valer para todos. Assim, a lei evita a necessidade de negociações em massa com vários credores.
Em números absolutos, o uso da recuperação extrajudicial é pequeno em comparação com a recuperação judicial, que só no ano de 2023, até novembro, teve 1.303 pedidos registrados. Para Juliana, o importante é observar a tendência de aumento. “Acredito que nos próximos anos a recuperação extrajudicial vá se consolidar mais”, diz. “O problema ainda é a falta conhecimento. A dificuldade é mais cultural do que técnica”, acrescenta.
Marcelo Vieira de Mello, do GVM Advogados, afirma que já conduziu com sucesso vários processos de recuperação extrajudicial. Porém, nenhum dos planos aprovados pelos credores chegou a ser levado para homologação na Justiça, exatamente porque foram aprovados por todos ou quase todos os envolvidos.
Nesses casos, ao sentar à mesa para negociar o plano de recuperação extrajudicial, chegou-se a uma aprovação tão alta que foi dispensada a intervenção da Justiça. Em 2023, por exemplo, o advogado conta que conduziu quatro recuperações extrajudiciais, todas acabaram em acordo e nenhuma foi ao Judiciário.
“O número de recuperações extrajudiciais realizadas a gente nunca vai saber, porque há um universo oculto”, diz Mello. Segundo o advogado, mesmo quando o plano não chega à Justiça, a nova Lei de Recuperação e Falências é importante ferramenta de pressão, pois dá mais peso para a proposta do devedor. Se ela não for aceita voluntariamente, afirma ele, o credor sabe que pode ir parar na Justiça. “O credor pode negociar a proposta ou ela pode vir goela abaixo.”
Outra vantagem da recuperação extrajudicial é iniciar negociações que podem resolver o problema da empresa, mesmo que não com todos os credores. Mello conta de um cliente que tinha dívidas com sete bancos e conseguiu negociar a redução de juros e alongamento de prazo com seis. O último ficou irredutível. A solução foi fechar o acordo com seis e resolver a dívida com o sétimo em um processo judicial específico de execução do contrato de crédito.
Segundo especialistas, a recuperação extrajudicial pode ser mais ou menos viável a depender do perfil da dívida e da relação do empresário com seus credores. A advogada Adriana Zamponi, do Wald Advogados, que atuou em recuperações judiciais de grande porte, como da telefônica Oi e da mineradora Samarco, diz que faz diferença se o perfil da dívida é concentrado em poucos credores ou disperso entre vários grupos deles.
Para a recuperação extrajudicial dar certo, avalia a advogada, é melhor haver um número menor de credores, além de um relacionamento mais próximo com eles, principalmente se forem bancos. Há ainda, afirma Adriana, a questão de como o mercado vai reagir. “Se a empresa começa a chamar muita gente para negociar, pode acender um sinal amarelo nos credores, e dar início a uma corrida por execução de garantias. É preciso se perguntar: como eles vão se comportar?”
Gabriel Montemezzo, advogado de contencioso do Costa Tavares Paes Advogados, diz que houve um nítido aumento do número de recuperações extrajudiciais no último ano. Mas avalia que o instrumento tem limites. “O processo de recuperação extrajudicial é ideal para empresas com problemas financeiros pontuais, enquanto no processo de recuperação judicial as empresas estão em crises mais intensas”, afirma.
Por isso, advogados apontam que o momento em que a empresa procura ajuda faz diferença. A recuperação extrajudicial funciona quando a empresa começa a ter dificuldades, está inadimplente com alguns grupos de credores. Ter dívidas generalizadas, incluindo muitos passivos trabalhistas e tributários, afirmam especialistas, tende a tornar a fórmula menos viável.
Apesar de a reforma da legislação do ano de 2020 permitir a inclusão de dívidas trabalhistas na recuperação extrajudicial, advogados entendem que, na prática, esse é um crédito de difícil negociação. Segundo o levantamento do OBRE, o primeiro caso de recuperação extrajudicial a incluir dívidas trabalhistas foi o do time Figueirense, de Santa Catarina, no ano de 2021.