Renegociação

Fluminense consegue no TJPR alterar recuperação judicial do Paraná Clube

Decisão obriga o time a prever em plano já aprovado pagamento de dívida sem deságio.

O Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) determinou a criação de uma subclasse de credores na recuperação judicial do Paraná Clube, que buscou o Judiciário em 2022 para reestruturar passivo de mais de R$ 119 milhões. A decisão obriga o time de futebol a fazer um aditivo no plano já aprovado em assembleia para que dívidas reconhecidas pela Justiça Desportiva não sofram deságio. A decisão beneficia o Fluminense, a quem o Paraná Clube deve R$ 800 mil pelo não pagamento da transferência de um jogador.

Para o TJPR, essa dívida não deve ter o mesmo tratamento que as demais porque foi reconhecida pela Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD), órgão independente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) que julga conflitos entre clubes. Pelo regimento interno da CNRD, um débito confirmado por sentença não pode sofrer descontos - a não ser que a outra parte autorize.

No entendimento dos desembargadores, o regramento interno do setor deve se sobrepor à legislação de insolvência. A decisão evita que o time carioca - único com crédito reconhecido pela CNRD - seja pago com 50% de desconto, percentual previsto para os outros credores quirografários (sem garantia). O Paraná Clube vai recorrer da decisão.

O acórdão do TJPR divide a opinião de advogados. Enquanto alguns defendem ser preciso respeitar as regras da CNRD, outros entendem que seria abrir mais uma exceção dentre as muitas na Lei de Recuperações Judiciais e Falências (Lei nº 11.101/2005), como o privilégio de créditos trabalhistas e tributários. E que o Estado não poderia interferir no plano aprovado em assembleia.

Segundo especialistas, a jurisprudência admite a criação de classe com tratamento diferenciado, mas seria a primeira decisão desse tipo em uma recuperação de clube de futebol e da própria Justiça determinando a criação da subclasse - algo normalmente proposto pelos credores ou pelo devedor. A maioria dos times, como o Coritiba, Cruzeiro, Náutico, Sport e Santa Cruz, previu o pagamento especial já no plano de recuperação.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já permitiu a criação de subclasse, mas impôs certos parâmetros. Para a Corte, a segregação é possível desde que embasada em critérios objetivos especificados no plano. Também não poderia haver descontos que impliquem anulação de direitos de eventuais credores isolados ou minoritários (REsp 1634844).

No TJPR, o relator do caso, o desembargador Ruy Alves Henriques, da 17ª Câmara Cível, entendeu que seria preciso observar as particularidades do caso e respeitar a isonomia entre credores. Ele considerou que se for descumprido o regramento da CNRD, poderiam ser aplicadas sanções ao Paraná, expondo-o “ao risco de não poder desempenhar a própria atividade desportiva exercida”. Dentre elas, a desfiliação e a proibição de atuar em atividade relacionada ao futebol, assim como a aplicação da cláusula “transferban”, em que o clube ficaria proibido de transferir ou contratar jogadores para seu elenco por um período de seis meses a dois anos.

Para ele, a aplicação da penalidade “contraria a finalidade legalmente estabelecida para o instituto da recuperação empresarial, qual seja, a preservação da empresa”. Por isso, embora não haja “margem regulamentar que permita à CNRD deixar de aplicar sanções se o pagamento for a menor do que o acordado, é possível reconhecer o pagamento parcelado, aliado à criação de subclasse no plano de recuperação judicial, para evitar ou suspender a aplicação de sanções ao clube devedor” (processo nº 0085203-06.2023.8.16.0000).

No processo, o Paraná acusa o Fluminense de tentar ferir o princípio da igualdade entre credores, obtendo privilégio dentre os demais. Afirma que não foram demonstradas ilegalidades no plano e que somente o time carioca se posicionou contrário, por não ter visto seu pedido de tratamento desigual ser acatado.

Ao Valor, o Paraná Clube, por meio de seus representantes no caso, do escritório Gomes de Mattos Advogados Associados, diz que a decisão do TJPR “representa um pequeno acréscimo de cerca de 0,2% do valor do passivo originário” e que “não prejudicará a boa execução” do plano. Mesmo que “o impacto financeiro seja diminuto”, acrescenta, vão recorrer com base em precedente do STJ de que “a vontade da assembleia geral de credores é soberana para decidir sobre questões negociais”.

O Ministério Público do Estado do Paraná opinou inicialmente que não seria ilegal criar uma subclasse, desde que seja embasada em critérios objetivos. Em segundo grau, porém, deu parecer afastando a necessidade da criação da subclasse, com o argumento de que o tribunal violaria a soberania da assembleia e adentraria no aspecto de viabilidade econômica do plano. O administrador judicial do caso, a Companhia Brasileira de Administração Judicial (CBAJ), também opinou no mesmo sentido.

Pedro Teixeira, sócio do TPB Advogados, e advogado do Fluminense no caso, avalia a decisão como “inédita” e “paradigmática”, porque compatibilizou o sistema da insolvência com o desportivo. “Essa decisão confirma a intenção da CNRD de compatibilizar a reestruturação dos clubes com equilíbrio competitivo”, diz Teixeira, também membro da CNRD.

Ele diz ainda que o sistema desportivo veda deságios para garantir o equilíbrio da competição, evitando, por exemplo, que clubes e gestões mal intencionadas comprem jogadores e não honrem integralmente os pagamentos, o que pode desvirtuar o resultado de um campeonato.

Carlos Magno Faissal, sócio do NFCS Advogados e membro da Comissão de Estudos da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) da OAB-RJ, afirma que a criação de subclasse é uma faculdade do devedor. Mas que, nesse caso, há a peculiaridade do regulamento esportivo colidir com a lei de insolvência. “Como não tem legislação que concilie bem a lei falimentar com especificidades da atividade econômica do futebol, vai ser no caso concreto que os precedentes vão sendo criados”, diz.

Segundo ele, “do ponto de vista da preservação da empresa, é mais prudente que se crie uma subclasse”. Mas como a discussão sobre o tratamento dos créditos da Câmara é recente - até porque a previsão legal de que time de futebol pode entrar em recuperação judicial veio com a Lei das SAFs, em 2021 -, o ideal seria pensar em uma regulamentação pela CNRD ou pelo Congresso.

O advogado Julio Mandel, do Mandel Advocacia, entende que a criação da subclasse, nesse caso, é injusta. “Deveria prevalecer a lei falimentar porque existe um interesse coletivo maior”, diz. O privilégio dos créditos da CNRD, acrescenta, também não está previsto na legislação de insolvência. “Se ficar criando exceções, a lei vai virar um Frankenstein. A lei vai se esvaziando e deveria valer para todo mundo.”

A advogada Juliana Biolchi, diretora geral da Biolchi Empresarial, entende que não poderia haver uma imposição da criação da subclasse pelo Judiciário e que se há a novação da dívida na recuperação judicial, a CNRD não poderia aplicar sanções. “Partindo da premissa de que o plano faz a novação da dívida, o pagamento começa do zero. Ele não está inadimplente, então não tem sanção para se aplicar”, diz.

Reportagem originalmente publicada em Valor Econômico

Publicado em
4/9/2024