O regime de urgência para a aprovação do PL 3/2024 está provocando reação por parte de institutos da área, acadêmicos e operadores do Direito, que apontam a falta de diálogo por parte do governo. Na área que tem como característica os interesses divergentes, a apresentação gerou um consenso em função da forma com que o projeto foi apresentado. A advogada especialista em recuperação de empresas Juliana Della Valle Biolchi ficou surpresa com a iniciativa do governo, embora entenda que existem pontos positivos. "Não temos um problema de conteúdo, temos um problema de forma, que é a falta de diálogo", criticou, em entrevista ao JC Contabilidade. Para a advogada, o projeto não está claro para a sociedade. Juliana aponta que os acertos do PL ficaram de lado, dando protagonismo à decisão apressada por parte do governo. JC Contabilidade? O projeto de Lei foi uma surpresa entre os profissionais da área? Juliana Biolchi - Tínhamos a Lei de Recuperação de Empresas, que passou por uma reforma em 2020 e entrou em vigor em 2021. Tivemos esses três anos de aplicação dessa reforma e, agora, estávamos colhendo os frutos. Surpreendeu, sim, primeiro pelo fato de o governo fazer esse movimento de reformar novamente essa matéria através do projeto de lei, encaminhado pelo Executivo no início desse ano. Contab - Qual a crítica a esse projeto? Juliana - Entendo que esse movimento veio desprovido de uma base de dados que pudesse dizer que, por exemplo, o que foi feito em 2020 não entregou resultado desejado, de forma que justificasse uma nova revisão do procedimento de falências. Além disso, tudo isso foi pensado e desenhado a partir de grandes casos grandes que despertam muito interesse, como, por exemplo, a falência do Banco Santos, sobre a qual se falou muito. Essas falências grandes são excepcionais. O mais comum são casos pequenos de empresas pequenas e, muitas delas, sem ativos. E a lei foi para todos. Essa figura do gestor fiduciário e a troca automática, tudo foi pensado para todos os casos. Se criou uma mudança profunda num procedimento que tinha sido recentemente reformado e que não tinha sido a experiência de todos. Contab - Qual teria sido a intenção do governo? Juliana - O governo precisa arrecadar. Existe um estoque trilionário de créditos na rua, de empresas que não pagam suas obrigações tributárias. Nesse estoque, tem muitos ativos que ainda podem ser recuperados. O Estado brasileiro tem uma trajetória de criação de instrumentos que sejam mais eficientes do que aqueles que existiam antes para recuperar esse crédito. Isso não é uma atitude isolada do governo Lula. Isso é típico de uma busca de tornar eficiente o recebimento dos seus créditos. O interesse do governo foi esse, e entendo que é legítimo. O que ficou ruim foi o desdobramento disso, como tudo foi conduzido. Nós não temos um problema de conteúdo, nós temos um problema de forma, que é o processo de urgência, sem diálogo, que resulta em um problema de conteúdo, de ideias que não foram amadurecidas. Contab - Uma das críticas diz respeito à fila de preferenciais. Vai haver alteração?Juliana - As dívidas trabalhistas continuam em primeiro lugar na fila, isso não chegou a mudar na ordem de pagamentos. O que mudou foi a dinâmica. O projeto passa o controle do processo de falência para a mão dos credores. E isso se inscreve nos interesses do governo porque o governo é credor em muitos processos. Os credores trabalhistas costumam ser credores que têm uma articulação menor. São funcionários, reconhecidamente hipossuficientes. Eles não têm um poder de articulação maior do que credores financeiros, por exemplo, como a própria Fazenda. Eles vão ficar, sim, preteridos, nessa dinâmica, não há a menor dúvida. A hipossuficiência que eles detêm é econômica. E a gente está diante de uma legislação com conteúdo econômico. É como os minoritários em uma sociedade, ou seja, têm poder de decisão limitado. Contab - Em outra alteração, a que diz respeito ao administrador judicial, qual impacto nos processos? Juliana - Acho que o PL tem algumas funções positivas que acabaram ficando de lado em função da forma como foi feita, tomando protagonismo. Mas tem pontos complicados. Uma das mais complicadas para mim é a que tentou criar um conjunto de limites relacionados às remunerações dos administradores judiciais (AJs). Dentro do sistema, ele tem um papel de administração do processo, e, de fato, se tornou um trabalho que foi ficando cada vez mais complexo e cada vez mais caro em uma situação de crise, de escassez. Então não tem o menor sentido encarecer o trabalho do administrador judicial e cobrar isso da empresa, sendo que ele trabalha com variáveis que, muitas vezes, não geram valor no processo. Por exemplo, ele tem um papel fiscalizatório muito intenso. É como se a empresa que está em recuperação judicial fosse auditada todos os meses. Isso custa dinheiro e recurso humano. Contab - Daí a limitação de processos? Juliana - O que o PL fez? Limitar. Cada administrador judicial só vai poder ter quatro administrações, quatro falências com o mesmo juiz. A ideia é ótima, mas não tem administrador judicial para dar conta de tudo isso. No caso do Rio Grande do Sul, há duas semanas, haviam 1610 processos de falências ativos. Nós temos sete juízes competentes para matéria falimentar. Se dividir, vai precisar de 230 AJs para distribuir quatro para cada um. Nós não temos esse número. Haverá a necessidade de vir AJs de outros lugares do país. Contab - O tempo de atuação do AJ também foi alterado? Juliana - São 180 dias de negociações e 24 meses de supervisão. O administrador permanece à frente do processo pelo prazo e depois ele pode ser substituído. Eu entendo que é um prazo razoável. Mas na falência é muito difícil terminar em três anos porque a empresa tem ações de conhecimento, que tem um litígio, algum crédito para cobrar. O tempo do processo judicial é mais longo. É intrínseco ao processo falimentar a demora.